domingo, 27 de fevereiro de 2011

Crítica teatral - Pororoca


Nosso país é repleto de fenômenos e características naturais que rondam as matas, florestas e litorais e que junto a elas trazem costumes, crenças e uma vida que se adapta à estes fatos que são inevitáveis. Da mesma maneira que uma pessoa sd extremo Sul tem casas e vestimentas adaptadas ao frio que receberão no inverno, que o paulista sempre sai com um guarda-chuva, mesmo quando está o maior sol e o nordestino litorâneo não passa mal mesmo enfrentando 40 graus de calor, alguns vilarejos ribeirinhos precisam se adaptar ao encontro das águas no Norte conhecida na linguagem tupi como Pororoca. A grande onda não muda só o fluxo das águas, muda sua intensidade, muda seu ritmo e o ritmo da vida daqueles que vivem ao seu redor. O espetáculo de Zen Salles dirigido por Sérgio Ferrara conta a história de um desses vilarejos que estão às vésperas da chegada do fenômeno, e sua preparação para a chegada deste.
Neste ambiente simplório, cheio de crenças, misticismos e costumes de outrora, somos apresentados a personagens como o Negro Lobato, que perdeu uma perda para as piranhas, a velha Jaci, mais velha que o passado em si, teve toda família levada pela pororoca, incluindo sua própria sombra, ela é o lado espiritual, o contato com a natureza, as rezas indígenas e africanas, o sacro ligado à natureza, o respeito pela força dos elementos, ela é o contato com a Pororoca e quem decide quem esta irá levar, e em meio a isso pescadores, grávidas, uma muda, crianças e lavadeiras, personagens comuns do interior do nosso país, mas nada simples em sua construção. 
E são nos personagens que Pororoca encontra sua força motriz. A Pororoca em si vira só um apoio para questões maiores. Questões como um casamento destruído por uma morte, a perda da inocência, o comércio sexual, a religiosidade, a crença espiritual, todos esses aspectos tratados individualmente, mas entrelaçados nas relações familiares desses. Em dado momento, chegamos a esquecer da pororoca e começamos a nos preocupar com o destino de cada um deles, e é aí que a peça fica ainda mais interessante. A desconstrução da primeira imagem que temos das personagens, a lavadeira com um passado culposo, as crianças que estão a um passo de enfrentar a dura vida adulta, a velha que pode não ser tão espiritual assim, e tudo isso envolto da magia das fábulas das águas do Brasil trazem para Pororoca um aspecto mais btrasileiro impossível, mas não um Brasil que insiste em tratar da pobreza e de seus problemas sociais. Não, aqui as características brasileirais são ricas, são da cultura, dos costumes, dos antepassados, e trazem mais requinte a vida simplória de seus personagens.
Tecnicamente, o cenário simples e eficaz, com uma plataforma que cria um segundo plano e elementos cênicos básicos que se transformam em várias coisas, como um baú que vira cama e até transporte embutem o aspecto simplório e criativo desse povo. Flâmulas com peixes e sereias, com fitas coloridas nos remetem a imagem do folclore presente, da presença viva da água e da religiosidade mesclada do brasileiro, que faz oferenda para Iemanjá com fitinhas do Senhor do Bonfim nos pulsos. O uso da música ao vivo desde o aguardo para o início da peça nos remete as cantigas de roda, ao cordel e aos cantos indígenas, ambientando a platéia ao que virá. Vocalmente, artistas bem preparados, preenchem o espaço, mesclam com as nuances de tom os momentos sérios dos cômicos e numa leveza de tom nos informam quando se trata do passado e do presente. O elenco aliás está afiadíssimo, cada personagem é completo, mesmo os menores não são pequenos, são complexos sem deixar de ser simples. Nega-se o uso de muitos badalaques e fugas interpretativas e fica-se na essência, no sentimento que nos envolve e preenche os diálogos ribeirinhos.
Pororoca então é mais que uma onda do encontro das águas. É uma onda que encontra vidas, sentimentos, resoluções de vida e que mostra a todos que existe uma vida nas partes mais longínquas do país que merece ser vista e apreciada. Que tem uma beleza, uma estrutura que nós, enclausurados por prédios, fumaça e gravatas nos esquecemos que existe e que é gigante pela própria natureza.

Nenhum comentário: